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O suor do meio-dia

João das Chagas acorda cedo. Era ainda madrugada. Ansioso. Junta na sacola de plástico transparente alguns papéis e o dinheiro do leitão…

João das Chagas acorda cedo. Era ainda madrugada. Ansioso. Junta na sacola de plástico transparente alguns papéis e o dinheiro do leitão que vendeu na semana passada para pagar a van e o almoço naquele dia de viagem longa. Era o leitão do Natal.

Apronta o café antes do raiar do sol, separa duas sacas de farinha para entregar aos filhos.

– Uma pra venderem e outra pra comerem, avisa para sua vizinha deixar o recado.

Ainda no escuro da madrugada, percorre com um facão as plantações de milho e arroz com seu cachorro vira lata, enquanto chega no engenho onde faz garapa de cana de açúcar apenas para consumo. 

– Está tudo bem, diz ele.

De volta a sua tapera, onde a van vai passar para buscá-lo daqui a meia hora, beija a foto de dona Lili, sua falecida esposa, pedindo intercessão para os santos lhe abençoarem naquele dia.

Chapéu de palha, camisa de botão e chinelo de dedo, aquele homem de olhar baixo e sincero, dedos calejados e rugas que retratam uma vida de sacrifícios ao sol espera a condução para ir à capital. Um destino lhe aguarda.

No caminho, pela janela da van seu olhar se perde no horizonte contemplando a arte do nascer do sol, lembrando da falecida esposa e dos oito filhos; e da vida que seguiu feliz naquelas terras tão distantes, guardando no seu gesto inato de humildade uma sabedoria que somente a vida lhe ensina. 

– Está nas mãos de Deus, dizia ele com a serenidade de quem já viveu incertezas piores.

A selva de pedras está ali. Um prédio de 10 andares cheio de placas e guardas na porta. Mandaram-lhe sentar-se em uma cadeira e aguardar. Muitos caciques, só ele de índio.

Enquanto aguardava, analisava aquele mundo totalmente diferente do seu e só pensava em conseguir seu aposento e voltar para casa, na mansidão do seu casebre de chão batido com um mínimo de renda que pudesse desfrutar naquela idade. 

Foi chamado pelo nome completo. Mandaram-lhe sentar-se em outra cadeira. Dessa vez de frente para uma mesa que cruzava com outra mesa com várias telas de computador.

Sem muita abertura para se sentir à vontade, seu João viu todo mundo vestido de paletó, cada um vidrado em uma tela de computador como se pouco se interessassem por sua vida. E era ela que estava em jogo naquele momento.

– Será se estou no lugar certo? Indagou a si mesmo em pensamento.

Uma sequência de perguntas a ele é direcionada. Perguntas sobre a terra onde trabalha, testemunhas, casamento, filhos e coisas da plantação. Parecia uma tentativa de pegá-lo na mentira.

Enquanto amargava quase 03 anos de chaga tentando se aposentar, seu João enfrentava do outro lado da mesa alguns olhares desconfiados que julgavam saber mais da vida que ele, porque naquele exato momento tinham o poder de definir seu futuro.

Sua sabedoria o fez ficar calado, apenas confirmando os parcos documentos que juntou ao longo de sua vida na zona rural.

Em instantes, se deu conta de que toda aquela perspectiva criada há anos se resumiria naquele momento, sob o julgo de pessoas que se esforçavam para saber mais da roça do que ele e na arte de fazê-lo entrar em contradição.

Foi seguro nas perguntas, refutou joguetes e por fim foi mandado embora com o aviso de que seu futuro seria decidido depois.

No suor do meio-dia retorna para sua mansa terra, ansioso por descansar na tranquilidade do seu mundo, mas com o coração inseguro sobre seu futuro e surpreso por saber que tudo aquilo que viveu na roça pode não dar em nada se os julgadores por tela resolverem não dar sua aposentadoria. 

– É o julgamento dos homens, confortou-se. 

– O de Deus é maior, reforçou na tentativa de se conformar.

Chega em casa no final da tarde. Come do sobejo do jantar de ontem e vai se deitar.

Fazia tempo que a incerteza não consumia tanto seu dia a dia. E logo no auge dos seus 68 anos. Semanas se passaram sem saber se futuramente teria um mínimo para comer. Um mínimo para descansar o corpo já frágil e calejado de tanto suor. Essa era a incerteza.

Foi então que numa manhã cedo vem de longe correndo um menino de pés descalços, pouco mais de 12 anos, chamando o nome de seu João e carregando um papel branco, eufórico por lhe passar alguma informação. E era.

Com o batimento cardíaco acelerado, sem saber ler o que tinha escrito, indagou ele ao menino o que era aquilo.

– É o seu aposento que saiu, respondeu em tom de quem se sentia parte da conquista daquele momento.

Seu João, duvidoso da notícia, foi ao comércio mais próximo perguntar a quem sabia ler se era aquilo mesmo.

– É o seu aposento e o senhor começa a receber mês que vem, disse-lhe o rapaz da quitanda.

 Naquele momento, enquanto retornava para casa ainda anestesiado pela notícia e com lágrimas nos olhos, foi inevitável seu João rememorar toda trajetória da sua vida, pois estava entrando em outra fase. Talvez a última.

Agradeceu a Deus e aos julgadores à distância. Orou aos santos e pediu, como quem tem a sabedoria que somente a vida lhe confere, que aquela benção fosse distribuída de forma justa entre as pessoas que realmente precisam e tenham direito, demonstrando nesse pequeno gesto ter percebido toda a essência que dificulta a justiça clamada, que é justamente no exercício do direito.

Animoso e de alma descansada, deita-se na rede e adia o suor do meio-dia.

Autor

Ibraim Djalma

Formado em direito pela Universidade Federal do Maranhão, aprovado nos concursos pra procurador de fazenda nacional e procurador federal. Foi assessor no TRF1. Procurador Chefe do INSS do Maranhão e membro da Equipe Nacional de Consultoria de Benefícios. Professor de direito previdenciário, criador de um método dinâmico, prático e eficaz para o aprendizado do direito previdenciário. Apaixonado por musculação, leitura. Adora ensinar.

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